Desistir da casa própria vai custar metade do seu investimento

Por Fernanda Santos

Para o setor imobiliário, as novas regras são importantes para dar segurança jurídica aos negócios e para garantir que haverá dinheiro para continuar a construção

Além da multa de 50%, os consumidores podem ter de pagar mais 5% ou 6% do valor do imóvel como taxa de corretagem

Financiar a casa própria vai exigir um melhor planejamento do consumidor. Os deputados aprovaram o texto que muda as regras do chamado distrato imobiliário – quando o consumidor deixa de pagar um imóvel financiado na planta ou desiste do contrato no meio. Pela nova lei, que aguarda sanção do presidente Michel Temer, sobe para 50% o valor que pode ser retido pelas empresas do setor imobiliário (incorporadoras, construtoras ou corretoras de imóveis) no caso de desistência do financiamento.

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Esse dinheiro ‘preso’ funciona como uma espécie de multa pelo distrato. Além disso, a nova legislação legaliza uma tolerância de 6 meses na entrega do imóvel pelas empresas, sem que elas tenham de pagar multa ao consumidor. A regra já valia no passado, mas agora foi oficializada.

Para entender como a nova Lei dos Distratos afeta o seu bolso, imagine que você tenha financiado um imóvel na planta há dois anos, com parcelas mensais de R$ 1 mil. Agora, ao desistir desse financiamento, receberá de volta apenas R$ 12 mil dos R$ 24 mil que já pagou.

É importante destacar que não importa o motivo do distrato. Mesmo que você esteja em dificuldades financeiras, metade do valor total ficará retido como multa pelo descumprimento do contrato.

Anteriormente, os casos analisados na Justiça determinaram que as empresas do setor imobiliário retessem entre 10% e 25% do valor pago até a data do distrato. Mas não havia Lei sobre a multa. A decisão era tomada caso a caso, sobrecarregando o setor judiciário com processos imobiliários.

Para quais imóveis a regra vale?

Essas normas devem valer para a maior parte dos imóveis construídos no Brasil que estão dentro de um regime chamado de afetação. Esse regime significa que o empreendimento tem CNPJ e contabilidade próprios, ou seja, que não estão dentro da estrutura de um mesmo grupo.

Incorporadoras e construtoras, por exemplo, fazem essa separação de cada uma de suas novas obras, portanto, entram no regime de afetação.

Mas os imóveis que não se encaixam nesse regime têm multa máxima de 25% em caso de distrato.

Vale para todos os contratos?

Não. A nova Lei dos Distratos vale apenas para os contratos que forem assinados após publicação da Lei. Lembrando que ela ainda não está valendo, pois aguarda sanção do presidente Temer.

Isso significa que se você tem um financiamento em andamento, ou se fechar um até o dia da publicação, ainda seguirá a regra antiga. A desistência do contrato estará sujeita a multa entre 10% e 25%, dependendo da decisão da Justiça.

Fora os 50% de multa, tem mais algum custo?

A nova regra diz também que, além da multa, os consumidores que pedirem o distrato terão de pagar entre 5% e 6% do valor do imóvel como taxa de corretagem.

“A perda do consumidor pode chegar a 56% do que ele pagou no imóvel”, diz o advogado Marcelo Tapai, especialista em direito imobiliário.

Pessoas que estão ocupando o imóvel e desistem do financiamento têm de pagar uma multa a mais: 1% (sobre o valor do imóvel) por mês de ocupação. A quantia é como se fosse o aluguel que a imobiliária deixou de ganhar naquele período em que o imóvel ficou ocupado.

O total retido pelas imobiliárias também pode incluir impostos e taxas de condomínio.

Em quanto tempo recebo o dinheiro de volta?

Além dos 50% de multa, o cliente vai precisar ter paciência para receber a outra metade do valor investido.

Segundo a Lei, os imóveis que estão no regime de afetação serão reembolsados 30 dias após sair o habite-se (autorização para que o imóvel seja ocupado). Isso significa que o consumidor vai precisar esperar o empreendimento ficar pronto para pegar o dinheiro de volta.

Hoje, o pagamento é imediato. Se o projeto não segue esse regime, o dinheiro é depositado 180 dias após assinatura dos distrato.

Existem exceções?

Há apenas um caminho para desistir de um financiamento de imóvel e reaver todo o dinheiro que já foi gasto em parcelas: encontrar um novo comprador que assuma a dívida e o restante do financiamento do imóvel.

O novo cliente fica com os mesmos direitos e obrigações já previstos no contrato original, mas precisa ser aprovado pela empresa dona do empreendimento.

E se o distrato é por parte da empresa?

Se quem descumpriu o contrato foi a dona do projeto, o consumidor tem o direito de receber de volta todo o valor pago pelo imóvel, incluindo taxas corrigidas e com juros.

Se teve outros prejuízos com o cancelamento desse contrato, também pode entrar na Justiça para pedir indenização.

O que dizem as construtoras

O problema dos distratos imobiliários afetou 35% das vendas do setor em 2014 e 26% das vendas em 12 meses, até julho de 2018, diz a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc).

As empresas acreditam que, com a Lei, o setor vai ter um ânimo novo e voltar a crescer.

“A regulamentação do distrato é uma necessidade imediata para o mercado imobiliário. É sinônimo de mais emprego e tranquilidade”, disse José Carlos Martins, presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), após a aprovação do texto.

O IQ 360 tentou contato com três representantes do setor imobiliário, mas eles não quiseram participar da reportagem.

– Lei dos Distratos dá segurança ao negócio

Para o setor, as novas regras são importantes para dar segurança jurídica aos negócios imobiliários, além de garantir que haverá dinheiro para as obras continuarem.

O argumento utilizado pelas empresas é que, com o empreendimento protegido de paralisações por falta de recursos, os atrasos de entrega diminuem e elas conseguem movimentar a economia, gerando empregos.

– Distrato afeta mais investidores que famílias

As empresas imobiliárias argumentam que a maioria dos distratos acontece por parte dos investidores e não dos consumidores comuns.

Ao contrário da família, que financia o imóvel pensando em ter uma moradia, os investidores adquirem vários imóveis de uma vez. Dependendo da oscilação do mercado, desistem do financiamento no meio e prejudicam o caixa do empreendimento.

A multa atual, entre 10% e 25%, não é considerada suficiente para inibir esses investidores na hora de pedir o distrato do financiamento. Por isso, as empresas do setor imobiliário brigaram para conseguir um valor maior.

O que dizem os consumidores

Para o especialista Marcelo Tapai, que também é vice-presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo, os argumentos das empresas não são válidos e o consumidor que faz o distrato é o único que perde com a nova Lei.

– Consumidor perde 50% do dinheiro e fica com nada em troca

Ao financiar um imóvel na planta, o consumidor está fazendo uma espécie de empréstimo à empresa para que ela siga com o empreendimento, mas ainda não é proprietário do imóvel.

 “Não existe prejuízo para a construtora, porque é um imóvel padrão e não personalizado. Se eu desistir agora, a empresa pode vender para qualquer outra pessoa, inclusive com lucro”, diz Tapai.

Em outras palavras, o consumidor perde metade do dinheiro pago e não tem contrapartida. Por outro lado, a empresa não perde dinheiro e ainda pode ganhar ao vender o mesmo imóvel.

– O distrato não impede o empreendimento de avançar

Tapai discorda do argumento de que, sem o dinheiro do financiamento, as empresas não conseguem seguir com o empreendimento.

“A lei não permite que uma construtora comece um investimento imobiliário só com o dinheiro que ela recebe dos financiamentos. O incorporador precisa levar a obra adiante mesmo sem as parcelas”, explica o especialista.

– Nova lei prejudica mais o consumidor comum

Por fim, na visão dele, também não faz sentido dizer que a maior parte dos distratos é feita por investidores que compraram vários apartamentos e não apenas um para servir de moradia.

“Isso aí não é a regra. Claro que existem meia dúzia de sujeitos espertos que fazem isso. Mas a maioria absoluta que faz a compra hoje é o consumidor comum, a família”, afirma.

– Sugestão

Para o advogado, uma solução para reduzir os distratos é que as imobiliárias fiquem mais atentas às condições financeiras dos consumidores antes de fechar a venda.

Elas também devem explicar melhor os custos envolvidos ao longo de todos os anos de financiamento e deixar claro que as parcelas aumentam com o tempo. “Isso já diminuiria o distrato por si só”, afirma Tapai.

O mesmo valeria para o caso de investidores. Se checassem o perfil do comprador com mais cuidado, as imobiliárias poderiam aplicar regras diferentes às pessoas que adquirem vários apartamentos de uma vez.

“Se o setor imobiliário acompanhasse melhor a compra, ele poderia determinar que quem compra 5, 10 apartamentos não é um consumidor e sim um investidor. Então, as regras são diferentes”, diz Tapai

O que deve acontecer com o mercado imobiliário

Marcelo Tapai não acredita que a nova Lei dos Distratos mudará o mercado imobiliário. “Quem compra tem a certeza que vai continuar pagando, e quem desiste é por motivos que ele não pode controlar”, explica o especialista.

Por outro lado, as empresas afirmam que a mudança deve incentivar novos empreendimentos, gerar empregos e reduzir o preço dos imóveis na planta, pois haverá mais segurança jurídica para as construtoras e garantia de caixa cheio.

Com todas essas informações, o consumidor tem um importante aliado na hora de fechar a compra de um imóvel novo: o desconto. Como as empresas reduziram o seu risco com o aumento do valor da multa, é mais do que possível barganhar uma redução de preço. Se o alvo da Lei era coibir a atuação de investidores e oportunistas, o bom comprador tem de saber negociar para se beneficiar.